Pierre Bessière: A história deste vírus é bastante antiga. Sabe-se que surgiu em 1996 na China. Naquela época, pouco foi feito para conter sua propagação. Desde 1996, os vírus desta linhagem continuaram a evoluir. No início da década de 2000, havia muitos casos humanos, com uma taxa de mortalidade superior a 50%, especialmente nos países asiáticos e africanos, mas no geral pouco se ouviu falar sobre isso. Em 2016, o vírus passou para a Europa, na forma do H5N8, que se tornou H5N1 em 2021. E a partir daí foi uma descida ao inferno. O vírus passou para as explorações agrícolas europeias, que serviram de caixa de ressonância, e depois voltou para a vida selvagem até se tornar endémico, com circulação viral duradoura em muitas regiões, incluindo a Europa.
Este vírus é extremamente polimórfico (que pode aparecer em diferentes formas, nota do editor), e a barreira de espécies entre aves e mamíferos é cada vez menos um problema para ele. Antes de 1996, não se pensava que um vírus pudesse ser transmitido a animais selvagens após passar por aves domésticas. Sabíamos que poderia passar de animais selvagens para animais domésticos, nas galinhas por exemplo, mas depois não estava mais adaptado às aves selvagens. Este vírus conseguiu abalar este dogma.
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“Existe um risco monumental para as populações de aves, particularmente na Antártica e nas Américas”
A vida selvagem já está numa situação preocupante?
Hoje, existe um risco monumental para as populações de aves, particularmente na Antártica e nas Américas. O vírus H5N1 pode até ser a gota d’água e levar uma espécie à extinção. Estou a pensar, por exemplo, no Condor californiano, já extremamente ameaçado. Na Antártida, colónias de milhões de aves nunca viram qualquer tipo de vírus influenza. Este vírus H5N1 se espalhou como um incêndio por todo o mundo e tem uma taxa de mortalidade considerável para certas espécies. Se chegar ao continente Antártico, sabendo que já atingiu as ilhas vizinhas, poderá ser um desastre ecológico, para aves e mamíferos. Um pinguim que morre devido ao vírus aviário torna-se uma presa fácil para um mamífero marinho.
Aves que morreram de gripe aviária são encontradas mortas nas praias e podem estar em contato com mamíferos. Créditos: Notícias Solentes/SIPA
Deveríamos estar preocupados com a contaminação das explorações agrícolas na Europa?
Nas granjas avícolas isso não é preocupante. A introdução periódica do vírus pela vida selvagem numa exploração de aves tornou-se quase rotina. Para tentar conter este efeito de “caixa de ressonância” nas explorações agrícolas, a França tem vacinado (desde Outubro de 2023) e, de momento, parece estar a funcionar bem. A ideia da vacinação dos patos é evitar que o vírus se espalhe quando uma exploração for afectada.
Teoricamente seria possível vacinar mais espécies, mas na realidade é complicado em termos de logística. Por exemplo, só para um pato, são necessárias duas a três doses para que funcione.
A propagação do vírus está ligada ao aquecimento global?
Sim e não. Podemos dizer que o aquecimento global pode ter perturbado as correntes migratórias, e certas espécies que antes não se cruzaram estão agora a cruzar-se. É isso que promoverá a propagação do vírus em larga escala e aumentará a transmissão entre espécies. Mas penso que não podemos dizer que o aquecimento global é responsável pelo aparecimento do vírus H5N1.
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“O risco é que o vírus passe dos gatos para os humanos”
De onde vem essa propagação global do vírus?
Recentemente, tem havido uma circulação viral tão significativa na vida selvagem que espécies de mamíferos que anteriormente não estavam expostas ao vírus tornaram-se assim. Há alguns anos, o gato doméstico, exceto em raras regiões da Ásia e da África, não tinha chance de encontrar o vírus H5N1 enquanto caminhava pelo campo. Atualmente, as contaminações são muito frequentes nos Estados Unidos. Estou a realizar um estudo sobre a contaminação de gatos domésticos em França: de 578 soros analisados, 13 são positivos para o vírus, incluindo 11 gatos proprietários e 2 gatos vadios. Eu não estava esperando por isso!
Os médicos veterinários devem ter em conta uma nova doença e têm muito pouca consciência dela. É também um problema de saúde pública por trás disso. O risco é que o vírus passe das aves para os gatos, o que já acontece, e depois dos gatos para os humanos. O risco existe, mas continua baixo no momento – apesar de todos os casos de gatos contaminados pelo vírus da gripe aviária que tivemos desde 2016, a transmissão para humanos só aconteceu uma vez (não, não com um H5N1, mas com um H7N2).
Já existem contaminações humanas, isso significa que o vírus ultrapassou a barreira entre os mamíferos domésticos e os humanos?
Há transmissões para humanos, mas principalmente nos Estados Unidos, por causa de aves, mas principalmente de vacas leiteiras. O vírus se reproduz no úbere, de modo que todos nas salas de ordenha ficam expostos a grandes quantidades de vírus em aerossol e podem ser contaminados.
Mas não existe uma cadeia de transmissão entre humanos. O vírus H5N1, quando passa para mamíferos e, portanto, para humanos, é muito “deficiente”. Tem muita dificuldade de multiplicar. Se conseguir chegar ao fundo dos pulmões, multiplica-se um pouco mais, e é nestes casos que há mortalidade, mas para aí porque não pode ser transmitido. Imagine este cenário de desastre: o vírus aviário passa para um gato, multiplica-se e adquire mutações que lhe permitem replicar-se de forma mais eficiente em mamíferos. Se for transferido para outro animal, depois novamente para outro, etc., as mutações se acumulam. O último passo é adquirir mutações na hemaglutinina (o H, no H5N1). Esta é a chave que lhe permite abrir células e ali se multiplicar. De momento esta chave abre principalmente fechaduras de pássaros, mas se o vírus obtiver mutações que modifiquem suficientemente esta chave, pode infectar as nossas células do sistema respiratório superior (traqueia, boca, nariz) e ser transmitido. No momento, ele não possui essas habilidades.
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É possível uma pandemia de gripe aviária?
Os vírus H5N1 conseguem sofrer mutações e obter sistemas de adaptação em mamíferos, das mais diversas espécies, selvagens ou domésticos. Assim que tivermos cadeias de transmissão – um gato que vive numa comunidade ou numa exploração pecuária – corremos o risco de obter um vírus bem adaptado aos mamíferos, que tem potencial pandémico.
Lá, estamos vivenciando uma panzoótica (contágio de uma doença que se estende a quase toda a população animal de um ou mais continentes, nota do editor) entre espécies avícolas. É uma certeza que em algum momento teremos uma nova pandemia de gripe. Se será o vírus H5N1 ou outro vírus influenza, não sei, mas todas as condições estão reunidas. No momento, a barreira de espécies entre uma ave e um mamífero ainda é importante. O pato tem uma temperatura corporal de 42 graus: para que o vírus se torne um risco pandêmico, ele deve conseguir se desenvolver bem na nossa traqueia, que está a 33 graus. Esta diferença de temperatura é considerável. Mas com mutações e cadeias de transmissão bem posicionadas, podemos alcançar um vírus com elevado potencial patogénico. Nossa melhor proteção hoje é a vacinação do gado e o conhecimento da doença pelos veterinários.